"- Boa tarde, doutor.
- Boa tarde.
- Vim registrar o desaparecimento do meu Gato de Botas.
- Seu Gato de Botas?
- Sim, doutor. Eu o tenho desde o tempo em que era uma pequena Cinderela que esfregava o chão, lavando roupas e banheiros. Depois, por ser muito branquinha e ter três irmãos, me transformei em Branca de Neve e os Sete Anões. Meus irmãos tinham vários amigos e eu os cuidava e eles me protegiam.
- Sei, sei...
- O quê? O senhor não está me acreditando? Eu posso ser tudo, menos Pinóquio, aquele narigudo mentiroso, que ainda por cima traiu o próprio pai.
- Então, está. Precisamos fazer um retrato-falado do seu Gato de Botas.
- Claro. Que ilustradores o senhor tem? O Roger Mello é muito realista em seus desenhos e faz figuras de partes do corpo fantásticas no Ver-de-Ver-Meu-Pai, de Celso Sisto, mas: e se ele fizer o meu Gato sem as Botas? Ou as Botas sem o meu Gato? Ninguém irá encontrá-lo, nesta imensa cidade.
- Não, o nosso ilustrador não é ele, mas posso lhe garantir que é tão bom quanto.
- Ah!, então é o Theo Siqueira, que une desenhos, objetos reais e recortes de papeis, dando efeito tridimensional às fotos das páginas do livro.
- Não, não, minha senhora... É só lápis e papel mesmo...
- Como? O senhor tem a coragem de me dizer “só lápis e papel”? Pois só com lápis e papel os irmãos Jacob e Wilhem Grimm coletaram inúmeras lendas orais europeias e as transformaram em livros; só com lápis e papel Oscar Niemayer esboçou Brasília; lápis e papel era o que os padres Jesuítas usavam para fazer as cópias à mão, dos primeiros livros existentes no mundo; lápis e papel...
- Tá, minha senhora, já entendi. Tudo bem. Vou chamar o desenhista. Oh, João! Chama a Maria!
- João e Maria! O senhor me deu uma ótima ideia para ajudar a encontrar o meu Gato, que não é o gato da Valesca de Assis de “Um Dia de Gato”. Vou colar em todos os postes que levam a minha casa um “Procura-se”, do mesmo jeito que o pequeno casal de irmãos abandonados sinalizou com pedaços de pão o caminho de volta. Coitadinhos: os pássaros comeram.
- A senhora pode dar início à descrição. Já está tudo pronto.
- Certo. O meu gato não “Era Outra Vez um Gato Xadrez”, que nem o da Letícia Wierzchowski e sim, amarelo com nesgas escuras e era muito contente com sua cor. Ah!, e, claro, tinha botas. Botas negras de cano alto que o deixavam o gato mais lindo do mundo. E convencido. Li para ele o “Ei, quem você pensa que é?!”, do escritor Gerson Murilo e só aí parou de pisar nas formigas.
- Sei, sei... E o que ele disse da última vez que a senhora o viu?
- Deixe ver... me lembrei: ele perguntou “Alguém, viu a bola?”, que também é o nome do livro de Jonas Ribeiro. O Gato a-ma-va a bola. Será que ele foi atrás da bola? Não, não. Lembro que o Criador o viu chorando e devolveu.
- Ããããrrrrrrããããnnnn...
- Lembrei! As últimas palavras do Gato de Botas foram: “Cadê meu travesseiro?”, igual à Ana Maria Machado. Será que ele foi em busca do travesseiro pelo mundo afora, tão sozinho?
- Não, minha senhora... Tenho certeza de que ele foi bem acompanhado pelos coelhos pensantes da “Menina Bonita do Laço de Fita” e do da Clarice Lispector.
- O senhor acha? Ah, que bom. Fico mais tranqüila. Eu sabia que o senhor usava “As Roupas Novas do Imperador”.
- Voldemort!!!! Leve esta mulher daqui!!
(Maria Valéria de Lima Schneider)”